sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Os malucos dos pais estão roubando a infância dos filhos.

A revista Isto é publicou esta entrevista de Camilo Vannuchi. O

entrevistado é Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com

Pós-Graduação em administração de empresas pela USP, consultor

organizacional e conferencista de renome nacional e internacional.

"Cuidado com os burros motivados"

Em "Heróis de Verdade", o escritor combate a supervalorização da

Aparências diz que falta ao Brasil competência, e não auto-estima.


(. Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter

aplicado o dinheiro em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado

muito tempo ou perdido várias oportunidades para aproveitar a vida.)


ISTOÉ -- Quem são os heróis de verdade?


Roberto Shinyashiki -- Nossa sociedade ensina que, para ser uma

pessoa de sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter

carro importado, viaja r de primeira classe. O mundo define que

poucas pessoas deram certo. Isso é uma loucura. Para cada diretor de

empresa, há milhares de funcionários que não chegaram a ser gerentes.

E essas pessoas são tratadas como uma multidão de fracassados. Quando

olha para a própria vida, a maioria se convence de que não valeu a

pena porque não conseguiu ter o carro nem a casa maravilhosa. Para

mim, é importante que o filho da moça que trabalha na minha casa

possa se orgulhar da mãe. O mundo precisa de pessoas mais simples e

transparentes. Heróis de verdade são aqueles que trabalham para

realizar seus projetos de vida, e não para impressionar os outros.

São pessoas que sabem pedir desculpas e admitir que erraram.


ISTO É -- O sr. citaria exemplos?


Shinyashiki -- Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica e

meu pai, órfão aos sete anos,empregado em uma farmácia. Morávamos em

um bairro miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida. Eles são meus heróis.

Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem. Acho lindo

quando o Cafu põe uma camisa em que está escrito "100% Jardim Irene".

É pena que a maior parte das pessoas esconda suas raízes. O resultado

é um mundo vítima da depressão, doença que acomete hoje 10% da

população americana. Em países como Japão, Suécia e Noruega, há mais

suicídio do que homicídio. Por que tanta gente se mata? Parte da

culpa está na depressão das aparências, que acomete a mulher que,

embora não ame mais o marido,mantém o casamento, ou o homem que passa

décadas em um emprego que não o faz se sentir realizado, mas o faz se sentir seguro.


ISTOÉ -- Qual o resultado disso?


Shinyashiki -- Paranóia e depressão cada vez mais precoces. O pai

quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de

inglês, informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão

aparece. A única coisa que prepara uma criança para o futuro é ela

poder ser criança. Com a desculpa de prepará-los para o futuro, os

malucos dos pais estão roubando a infância dos filhos. Essas crianças

serão adultos inseguros e terão discursos hipócritas. Aliás, a

hipocrisia já predomina no mundo corporativo.


ISTO É - Por quê?


Shinyashiki -- O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta, a

começar pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito com

mais marketing pessoal. As corporações valorizam mais a auto-estima

do que a competência. Sou presidente da Editora Gente e entrevistei

uma moça que respondia todas as minhas perguntas com uma ou duas

palavras. Disse que ela não parecia demonstrar interesse.

Ela me respondeu estar muito

interessada, mas, como falava pouco, pediu que eu pesasse o

desempenho dela, e não a conversa. Até porque ela era candidata a um

emprego na contabilidade, e não de relações públicas. Contratei-a na

hora. Num processo clássico de seleção, ela não passaria da primeira etapa.


ISTO É -- Há um script estabelecido?


Shinyashiki -- Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um

Presidente de multinacional no programa O aprendiz? "Qual é seu

defeito?" Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal:

"Eu mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar". É

exatamente o que o Chefe quer escutar. Por que você acha que nunca

alguém respondeu ser desorganizado ou esquecido? É contratado quem é

bom em conversar, em fingir. Da mesma forma, na maioria das vezes,

são promovidos aqueles que fazem o jogo do poder. O vice-presidente

de uma as maiores empresas do planeta me disse: "Sabe, Roberto,

ninguém chega à vice-presidência sem mentir". Isso significa que quem

fala a verdade não chega a diretor?


ISTO É -- Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal preparadas?


Shinyashiki -- Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a humildade

de se preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o fim e

não se preocupam com o conhecimento. Muitas equipes precisam de

motivação, mas o maior problema no Brasil é competência. Cuidado com

os burros motivados. Há muita gente motivada fazendo besteira.

Não adianta você assumir uma função para a qual não está preparado.

Fui cirurgião e me orgulho de nunca um paciente ter morrido na minha mão.

Mas tenho a humildade de reconhecer que isso nunca aconteceu graças a meus chefes,

que foram sábios em não me dar um caso para o qual eu não estava preparado.

Hoje, o garoto sai da faculdade achando que sabe fazer uma neurocirurgia.

O Brasil se tornou incompetente e não acordou para isso.


ISTO É -- Está sobrando auto-estima?

Shinyashiki -- Falta às pessoas a verdadeira auto-estima. Se eu

preciso que os outros digam que sou o melhor, minha auto-estima está

baixa. Antes, o ter conseguia substituir o ser. O cara mal-educado

dava uma gorjeta alta para conquistar o respeito do garçom. Hoje,

como as pessoas não conseguem nem ser nem ter, o objetivo de vida se

tornou parecer. As pessoas parecem

que sabem, parece que fazem, parece que acreditam. E poucos são

humildes para confessar que não sabem. Há muitas mulheres solitárias

no Brasil que preferem dizer que é melhor assim. Embora a auto-estima

esteja baixa, fazem pose de que está tudo bem.

ISTO É -- Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos

perfeitos em tudo e de valorizar a aparência?


Shinyashiki -- Isso vem do vazio que sentimos. A gente continua

valorizando os heróis. Quem vai salvar o Brasil? O Lula. Quem vai

salvar o time? O técnico. Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta.

O problema é que eles não vão salvar nada! Tive um professor de

filosofia que dizia: "Quando você quiser entender a essência do ser

humano, imagine a rainha Elizabeth com uma crise de diarréia durante

um jantar no Palácio de Buckingham". Pode parecer incrível, mas a

rainha Elizabeth também tem diarréia. Ela certamente já teve dor de

dente, já chorou de tristeza, já fez coisas que não deram certo.

A gente tem de parar de procurar super-heróis. Porque se o

super-herói não segura a onda, todo mundo o considera um fracassado.


ISTO É -- O conceito muda quando a expectativa não se comprova?

Shinyashiki -- Exatamente. A gente não é super-herói nem

superfracassado. A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de

tristeza. Não há nada de errado nisso. Hoje, as pessoas estão

questionando o Lula em parte porque acreditavam que ele fosse mudar

suas vidas e se decepcionaram. A crise será positiva se elas

entenderem que a responsabilidade pela própria vida é delas.


ISTO É -- Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto Shinyashiki

dizer essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem defeitos?

Shinyashiki -- Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas aceitá-las

faz minha vida fluir facilmente. Há várias coisas que eu queria e não consegui.

Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles (risos). Meu filho

mais velho nasceu com uma doença cerebral e hoje tem 25 anos. Com uma

criança especial, eu aprendi que ou eu a amo do jeito que ela é ou

vou massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu gostaria que

fosse. Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que fiz deram

certo. O resto foram apostas e erros. Dia desses apostei na edição

de um livro que não deu certo. Um amigão me perguntou: "Quem decidiu

publicar esse livro?" Eu respondi que tinha sido eu. O erro foi meu. Não preciso mentir.


ISTO É - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da aparência?


Shinyashiki -- O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as

pessoas cederem a essa tirania e tentar evitá-las. São três

fraquezas. A primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se

sentir amada e a terceira é buscar segurança. Os Beatles foram

recusados por gravadoras e nem por isso desistiram. Hoje, o erro das

escolas de música é definir o estilo do aluno.

Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou o Keith

Richards. Os MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a serem

covers do Bill Gates. O que as escolas deveriam fazer é ajudar o

aluno a desenvolver suas próprias potencialidades.


ISTO É -- Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?


Shinyashiki -- A sociedade quer definir o que é certo. São quatro

Loucuras da sociedade. A primeira é instituir que todos têm de ter

sucesso, como se ele não tivesse significados individuais. A segunda

loucura é: Você tem de estar feliz todos os dias. A terceira é: Você

tem que comprar tudo o que puder. O resultado é esse consumismo

absurdo. Por fim, a quarta loucura:

Você tem de fazer as coisas do jeito certo. Jeito certo não existe.

Não há um caminho único para se fazer as coisas. As metas são

interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade. Felicidade

não é uma meta, mas um estado de espírito. Tem gente que diz que não

será feliz enquanto não casar, enquanto outros se dizem infelizes

justamente por causa do casamento. Você pode ser feliz tomando

sorvete, ficando em casa com a

família ou com amigos verdadeiros, levando os filhos para brincar ou

indo a praia ou ao cinema. Quando era recém-formado em São Paulo,

trabalhei em um hospital de pacientes terminais. Todos os dias

morriam nove ou dez pacientes. Eu sempre procurei conversar com eles

na hora da morte. A maior parte pega o médico pela camisa e diz:

"Doutor, não me deixe morrer. Eu me sacrifiquei a vida inteira, agora

eu quero aproveitá-la e ser feliz". Eu sentia uma dor enorme por não

poder fazer nada. Ali eu aprendi que a felicidade é feita de coisas

pequenas. Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter

aplicado o dinheiro em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado

muito tempo ou perdido várias oportunidades para aproveitar a vida

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